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domingo, 11 de novembro de 2012

PARA UM RETRATO DA MINHA AMIGA CIDADE (Na íntegra)

Em Junho de 2010 coloquei esta cronica em seis partes. Tenho recebido alertas sobre a dificuldade dos leitores de conseguirem acessar as partes numa sequência lógica e simples. Assim, ao passarmos ontem pelos 125 anos da sua fundação, volto aqui a editar esta cronica escrita por Gouvêa Lemos no ano de 1963.
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PARA UM RETRATO DA MINHA AMIGA CIDADE
Um Samuel dos tempos atuais...
Foto de Zé Paulo registrada em Maio de 2012, em Maputo.

O sol nasce agora às seis e trinta e seis, mas continua a nascer no mar como em todo o ano. No lado noroeste da cidade não esperam por ele para começar o dia; usam madrugadas com lua, auroras de pobre.

*

O Samuel, que é um contínuo num terceiro andar da baixa desde as sete às dezassete e come o farnel à sombra de árvores, chamadas em latim no Jardim da Gama, e vai à noite às aulas da Industrial, mora as restantes quatro horas no Chamanculo. Chega ali já noite alta; sai de lá antes que a noite finde. Samuel é um morcego que sonha ser pássaro. Minha amiga cidade, Samuel será pássaro, não será ?
São quatro e meia da manhã e o vermelho machibombo arranca em frente do Bazar do Xipamanine, com os seus cigarros “king size” e seus sorrisos de dentifrico nos lombos, carregando lá dentro sob as luzes amarelas cinqüenta e tal estivadores, rumo à Praça Mac-Mahon. Que é do sol, que ainda não veio alumiar estes heróis no avanço do cais Gorjão, onde vão manusear às lingadas o pão nosso de cada dia? Que é do sol, que se guarda para acordar a Polana?!
Minha amiga cidade, atenção a esse sol, não vá ele aburguesar-se.

*

Pela Avenida Craveiro Lopes, já vem chapinhando na água das chuvas, chap-chap, os pés descalços no leito do asfalto do rio parado, o mainato, os moleques, os cozinheiros, os mufanas, as mamanas, os serventes, os ardinas. Os camiões de lixo recolhem. Os de leite circulam. Na Caldas Xavier galopa uma carrinha de quatro cilindros, trabalhando em três e batendo os guarda-lamas, com um cão a ladrar-lhe. Leva galinhas, ovos e papaias.

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Mesas empilhadas e cadeiras encolhidas junto das cervejarias, água e vassouras espreitando às portas, criados retirando as latas vazias de lixo, vai começando o ronronar contínuo dos motores de toda a casta de bichos com rodas, e – bom dia Lourenço Marques! – o sol já nasceu sim senhores, que as empregadinhas já pisam , e pisam bem, e ainda bem que pisam, as ruas que descem para as lojas, para os armazéns, para os salões, para os escritórios, para as repartições, ah! as empregadas já vêm, faladoras, os cabelos cacimbados do chuveiro, ó cidade amiga, elas dão-te mais graça, elas são mais frescas, elas são mais repousantes que todos os parques e jardins!

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Negros Mercedes-Benz são lavados sob alpendres das moradias, no Sommerchield; fardas de impedidos, paletós de motoristas, fardetas de moleques passam as cancelas de ferro. O pão já veio. Saem meninos para a escola. Lá para a rua Nevala, comanda um clarim com voz de galo. O Grêmio Civil ainda tem os vidros embaciados e já o sol toma banho na baía. É verdade: na baia, convém que um navio apitasse. Embora a chuva que há-de vir já traga, à cidade inteira, os silvos das locomotivas em manobras. E uma ambulância corra, tão cedo, com a sirene a gritar, pela Pinheiro Chagas, levando a mulher que ia tendo a criança na rua. Suponho que já chega de música de fundo, com a ubíqua motorizada na bateria.

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Cai toda a gente no afã de ganhar a vida consumindo outro dia. Tilintaram relógios de ponto. Chaminés largaram uns fumos de indústria. Caixeiros iniciaram o eterno dobra-e-desdobra das peças de tecido. E as barcas da Catembe vêm e voltam , carregando e descarregando gente, cestas e cangarras. Nos mercados municipais ou furtivos agitam-se figurantes em cenário de natureza morta. Compradores e vendedeiras fazem torneios de voz alta. A bela Juju ainda na cama, acorda e boceja; só agora dá conta, em câmara lenta, da noite que foi a noite passada. – Ahahnnn ...., foi demais, ela própria confessa, e enovela-se em busca do sono, que ao fugir, a deixa nua diante de si. . Vamos fugir da Juju, que ela vai chorar.

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Entretanto, lembremo-nos dela, ingenuamente fingindo de ingênua-bardot, a passar na Avenida da República, rentinha às mesas do Continental, entre as cinco e cinco meia da tarde. Não há lugares para mais ninguém nem é preciso haver, que estão lá todos do costume. As pessoas falam uma com as outras, não se olhando, pois o olhar é preciso para quem passa. As conversas... ora para que falar das conversas? Não interessam e nem podem interessar até porque, se interessarem, quem as apreciaria mais não seriam os interlocutores mas aquele sujeito da mesa ao lado; quem é ele, que faz ele, que está sempre na mesa do lado?...

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Sobretudo a praia, a praia principalmente. Eis o grande atractivo turístico da turística Lourenço Marques. É certo que há os camarões e os lagostins. É certo. E as lojas dos chinas e a arte indígena. O ambiente muito continental dos hotéis e a pincelada ibérica das touradas. E a hospitalidade, também, de que as turistas (nem sempre) se queixam. Mas a praia, sim, é que dá o tom. Por isso a marginal é o que é, e se tornou obrigatório rodar por ali, doze quilômetros a ir, doze quilômetros a vir. E por isso, também o Sr. Alves Pinheiro se embasbacou e falou dos “seus clubes navais”... Por trás dumas grades acampam turistas vermelhos que comem bananas. A gente vai vê-los, quando eles não estão comendo bananas e sim a porem-se vermelhos sobre a areia. Convencionou-se que elas são todas “giras”, o que dá uma certa alegria à rapaziada, que se embebeda, também convencionalmente, com coca-cola.

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Do sétimo andar caiu um belo vasinho de avencas. Escarrapachou-se no tejadilho do Hilman do senhorio. Um magnífico fim de tarde, prenhe de interesse, espumante de agitação. O senhor Freitas, seu marido, prefere a pesca de paredão. Ao menos ali, ninguém o chateia nem fala de ninguém. Deixou foi de levar o “transistor” para pousar na balaustrada, pois afastava os safios.

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Além da pesca desportiva, há a outra, sobre qual as teorias são diversas, parecendo, porém, provado que nas águas do Canal de Moçambique pescam bem os japoneses. Entretanto poveiros em traineiras, gente de Marracuene em “tatarjos”, indianos em barcos à vela, lá vão trazendo o teu peixe, amiga cidade. Arrancado a pulso, com saber e paciência, ao teu amado Índico. Mulheres, de filhos no dorso, varam a noite, metidas na água salgada até às coxas, caçando mariscos para o teu caril dominical e para ornamento da rendosa “season”. Peixe e mariscos para regatearmos bem regateados, que a visa, assim a subir... mas que grande roubalheira!

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Também varam a noite outras mulheres, sem filhos no dorso. Sem filhos no dorso, que atrapalhariam o “twiste” . Entram com a sua parte no coquetel do grande “show” nocturno, misturando-se com as espanholas e as gregas e as transvalianas, da cançoneta e do baile. São elas as encarregadas do “tic” exótico. Como começaram, como vão acabar, oh! la, la! – isso é que interessa? Para já, bebem e fumam, dançam e divertem.

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Rápida corrida para os cinemas. Rápida corrida para casa. Um atrasosinho para meio bife. Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer. Lourenço Marques, a moderna capital da província portuguesa de Moçambique, é uma cidade que cresce espectacularmente.

Os jornais, esta manhã, dizima todos o mesmo. Os que não diziam o mesmo diziam, obrigatoriamente disparates. Os que não diziam disparates não diziam nada. Mas será verdade o que eles dizem?... E o que eles não dizem, será verdade?...as consta, me garantiram-me ... Deixe que eu pago os cafés. Até amanhã.

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Antes de ir para a cama, ainda quero dizer que Lourenço Marques é uma cidade acentuadamente desportiva. As piscinas, os “courts” de tênis, os estádios abertos e cobertos, o Eusébio. Agora temos uma estação aéreo muito melhor para receber hoquistas.
Pronto, as redações fecharam. Ficaram os impressores a fazer os jornais. Só falta cumprir a conversa de bar. Começa em nobreza: a “cidade de caniço” foi o grande assunto jornalístico deste ano; devemos comprometer-nos a explorá-lo toda a vida. Concordam? Tudo concorda. Mais adiante umas garrafas, surge a primeira discrepância. Pequena. Depois outra, maior. E outra e outra. Vem a mãe das discrepâncias e cerra o horizonte da bula-bula. Só há uma solução: cada um fala do seu assunto. E vários monólogos simultâneos dão todo o esoterismo da conversa de bar.

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O compadre Tomás apanhou-o na queda e meteu-lhe um ombro sob o sovaco, puxou-lhe o braço à roda do pescoço e levou-o, de pernas bambas, pés a arrastar, os dois aos bordos, numa solidariedade forçada. O compadre Tomás, enfermeiro do Quadro de Saúde, ia a pensar na vida do João e perguntava-se a si mesmo, se fazia bem ou mal em levá-lo a casa. Ao mesmo tempo ia reparando em que a viagem, assim, era nervosa e cansativa. Quando chegaria ele, Tomás, à sua casa? E pensava, Tomás, que entraria de serviço na manhã seguinte, bem cedo. João resfolgava. Que idéia a tua João!

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Por mim, minha amiga cidade, vou apagar a luz na mesa de cabeceira. Cansado e tentado a não ter esperança. Mas sei que acordarei com um sol doirado e quente, em céu escandalosamente azul, a envolver-te completa, nos arrebiques e maselas, no riso e no choro, na música e nos gritos, nas flores e nos charcos, nos prédios e nos barracos, no amor e na briga de todos os contrastes, dando-se na mesma dádiva às trezentas e cinqüenta mil pessoas de que és feita. E o sol, minha amiga, minha mais bela cidade do mundo, o sol nasce agora às seis e trinta e seis. Nasce fatalmente!

 “Dário de Moçambique” , Lourenço Marques, 24 de Julho de 1963.


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

POR MAUS CAMINHOS


Enquanto esteve na Beira, de passagem para Lourenço Marques, o ministro das Obras Públicas, engo. Arantes e Oliveira, percorreu a cidade em companhia do presidente da Câmara Municipal, dr. Janeiro Neves, e do secretário provincial, dr. Andrade e Silva.
Andou o sr. Ministro por um lado e por outro desta Beira em obras, desta Beira que precisa de obras, principalmente de obras públicas e, de certo, o engenheiro ilustre sentiu-se em casa ao percorrer uma cidade em contínua construção, uma cidade inacabada, uma cidade-estaleiro.
Andou o sr. Ministro por maus caminhos e andou muito bem, pois sabemos que essas andanças lhe quadram ao feitio além de condizerem com a função. E também porque a Beira, só por si, justificaria um ministério de Obras Públicas, tal como o sr. Ministro, certamente ficou a pensar, quando terminou a sua rápida corrida por ambas as margens do Chiveve.
Por nossa parte, ficamos a pensar em que talvez tenhamos razão se ficarmos com a esperança nos resultados possíveis desta corrida ministerial pelos maus caminhos da Beira. Todos nos dizem e nós acreditamos que o engo. Arantes e Oliveira, além de técnico competente e de conceituado homem público, é pessoa de boa vontade e coração, que não deixará de se lembrar com interesse construtivo e solidariedade activa, desta jovem cidade que lembra uma rapariga partida, engessada, com muletas.

A.    V.

Notícias da Beira – Pág. 3 – 17 de Setembro de 1966


Obs.: “A. V.”  era o pseudônimo do Gouvêa Lemos, usado quando ele acreditava que o seu texto poderia ser censurado se colocasse o habitual G.L.. A. V. era na verdade a sigla de António Veríssimo, os dois primeiros nomes de António Veríssimo Sarmento Gouvêa Lemos.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

REPETINDO UMAS COISAS ÓBVIAS - Pegue-se no futuro de Moçambique...


"1963 X 2012" ou "1963 = 2012"
Pegue-se no futuro de Moçambique, de que tanto devemos cuidar, e como quem olha um poliedro, miremos-lhe as faces, uma por uma: sempre havemos de constatar uma necessidade urgente e iniludível, a condicionar e a implicar-se em todas as outras necessidades e chama-se ela desenvolvimento económico.
Pense-se na promoção social das populações, de que vemos gentes de vários feitios ocupar-se por formas diversas e com intenções diferentes, e logo se sente que pouco ou nada poderá fazer-se, se essas populações não forem promovidas economicamente.
Fale-se em consciencialização política ou esclarecimento cívico dum povo, para o habilitar a exercer direitos consignados na lei, e imediatamente se vê que a quem se aplica não tem um nível económico exigido.
Lembre-se a instrução, indispensável ao homem moderno, urgindo sobretudo onde ela tem de começar pela alfabetização de milhões de pessoas, ao mesmo tempo que deve exercer-se também em graus superiores, para constituição de elites intelectuais e formação profissional, e logo nos assustaremos de pensar o que haverá de ser ocupação adequada de quantos forem saindo das escolas, dos institutos, dos liceus, das faculdades universitárias, se um vasto programa de instrução não for acompanhado, apoiado e justificado por um surto simultâneo de desenvolvimento económico.
Veja-se como será inválida qualquer actividade séria no campo da saúde e da higiene, se a massa populacional sobre a qual se exerce não tiver possibilidade de elevar o grau da sua saúde colectiva, se não conseguir apurar os seus hábitos de higiene, se não tiver meios materiais e não dispuser de processos técnicos que lhe assegurem um estado aceitável de sanidade, se, em suma, a sua situação económica não lhe permitir praticar as teorias, dar continuidade às práticas e efectivar os seus resultados.
Repare-se em como será inviável a elevação espiritual de quem não tenha da vida uma concepção diferente da que lhe dá a preocupação da sobrevivência.
Ora, estas coisas tão simples como todas as de bom senso preocupam., afinal, quantos sejam conscientes e se encontrem em Moçambique e fazem que ninguém de boa fé possa admitir a fuga às obrigações que tais realidades impõem.
Moçambique tem no seu território enormes capacidades de riqueza, umas conhecidas e muitas apenas adivinhadas, mas sabendo-se de todas que são mais que suficientes para dar aos seis milhões e meio que aqui vivem e aos mais que vierem a viver excelentes condições económicas. Esse potencial tem de ser utilizado. Vai ser utilizado. Se não se fundasse nesta determinação, nenhuma política se justificaria.
O remédio de todos os males não está no processo simplista de aumentar salários; o que se impõe é o aumento da produção, a criação de riqueza, para se enfrentarem então os problemas da sua melhor distribuição, seja através de salários, seja na participação de lucros, seja pelo sistema que o povo escolher.
O que tem de haver é aquela certeza acima referida, generalizada e por todos vivida, de que o homem de Moçambique usará a riqueza que Moçambique oferece, parecendo-me, por isso, inoportunos certos rumores de pessimismo, que se manifestam até para condenar iniciativas daqueles que acreditam no futuro desta sua terra, baseando-se os velhos do Restelo em que os tempos vão muito maus.
Se os tempos vão muito maus, terão de vir a ser bons, mesmo contra a vontade de alguns.

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano IV, nº 96, 28 de Setembro de 1963, p. 10]

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

OS PSEUDOS



Eis que nesta Lourenço Marques tão garrida apesar dos pesares, remirando-se na baía nem sempre espelhada do Espírito Santo, encanudando e frisando os polanas e os somerchildes e escondendo os caniços, pupulam cada vez mais pululantes os pseudos.
É encantadora, chega a ser comovente a desfaçatez com que actuam livremente, muito livremente aliás, com uma liberdade só deles, certos pseudo-intelectuais, sem um mínimo de dignidade intelectual, que são pseudo-jornalistas, fazendo dos jornais postigos de delação, que são pseudo-escritores, escrevendo sandices com citações mal digeridas à mistura, que são pseudo-patriotas batendo-se por que se espete com a Pátria num atoleiro. São até, nas horas vagas, anti-racistas, generosamente, magnânimamente, como seres superiores que se julgam, detentores do direito a tais abdicações, mas quando se lhes mostra que mesmo nessa pseudo-generosidade paternal há racismo, os pseudo-humanistas enfurecem-se e gritam. E, em situações taís, pode acontecer que peçam uma balança para pesar encéfalos ou uma guilhotina para cortar cabeças, invocando Darwin em latim mal copiado ou Fidel Castro em português sem gramática. Isto é, quem for de cor diferente leva poucos miolos, quem for de opinião diferente fica sem miolos nenhuns. Mas não são maus homens, os pseudos. Até dão esmola aos sábados.
Oh! como andam activos, os pseudos!
Vem um, e de pera em punhal, ameaça com «el paredon» em estilo cubano os colegas e os «grupinhos» (os «grupinhos» são as suas varizes) da «Imprensa contra a Nação». Mal da Nação se a «Imprensa pela Nação» fosse a que ele abrilhanta.
Vem outro, e - tem graça! - também de pera em naifa, ruge impropérios contra quem chama traidores e antipatriotas (pobre da pátria que o pôs, se não fosse melhor servida!), sugere o fechamento de jornais, talvez porque se negaram à sua prosa que não escolhe poiso e esquecendo na precipitação polémica que, até porque isto de políticas é, como ele bem sabe, coisa sujeita a grandes contingências e reviravoltas, sempre será melhor haver mais jornais que menos, não só para os jornalistas mas até para os pseudos.
Oh!, senhores! como eles andam mausões!...
O pior é que - e só por isso eu dedico estas linhas aos pseudos - eles berram, barafustam, gesticulam e esbravejam e devem cada vez mais considerar-se certos e infalíveis, perante o silêncio de quem não quer e não pode, pô-los nus na praça pública, revelando-lhes a estatura e as mazelas.
Acabavam-se os pseudos. Calavam-se os activos, desiludiam-se os passivos, divertia-se a multidção, era uma santa higiene.

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano IV, nº 77, 18 de Maio de 1963, p. 12 e 11]

domingo, 14 de outubro de 2012

NEGRÓFILOS E NEGRÓFOBOS


Ninguém é obrigado a conhecer esta matéria, trata-se de coisa novíssima.

Assim como, a todo o momento, a ciência, em permanente evolução, em eterna busca e ininterrupta conquista, nos oferece mais um ramo, um diferente caminho, também a ignorância - oh! a bruta, a fera, a mexida ignorância - nos revela uma novidade, nos desvenda uma vereda inesperada, nos agride com um atrevido rebento.

E nós, os pobres homens, trocamos os olhos entre os pratos da balança, num deles Einstein, sereno, esclarecendo o Universo; no outro, D. Cretino Polit y Castro, aos pulos, não deixando a balança quieta.

A mim, por exemplo, chamaram, outro dia, negrófilo. Fiquei aflito, quer será isso, meu Deus, fui ver ao dicionário. Não porque eu fosse incapaz de recorrer à etimologia, por acaso sabia muito bem decompor a palavrinha, negro é preto, filo vem do grego, philos, quer dizer amigo, negrófilo seria amigo dos negros, nada de mal, pelo contrário, eu era uma pessoa decente, bem formada, um tipo fixe, sim senhor.

Ora o dicionário confirmou o meu humilde saber, fiquei sem perceber qual fora a ideia de me acharem aquele senão. O Cândido de Figueiredo só acrescentava que negrófilo também se chamava ao partidário da abolição da escravatura, mas isso não podia ser, olha o disparate, escravatura já não há.

Cismei uns minutos, não muitos, que eu por acaso até gozo de uma certa agilidade mental, e optei por averiguar o que seriam os meus acusadores, o que sentiriam, o que pensariam, para me censurarem aquilo. (Note-se que eu nem estava zangado ou ofendido com eles, pois se tratava, inegavelmente, de pessoas generosas, concedendo-me imerecidas vantagens no seu julgamento; só é pena, diziam, que seja negrófilo).

Claro está - concluí eu - que verberando em mim tal coisa, os meus estimáveis juízes devem ufanar-se do contrário: o antónimo de negrófilo, não preciso de perguntar a ninguém, é negrófobo. E senhor desta descoberta, iniciei-me na nova ciência, trémulo de emoção investigante. Mentalmente, espichei o indicador direito e apontei para mim: eu sou negrófilo; eles são negrófobos, e apontei para eles.

Cândido de Figueiredo sorriu-me e confirmou: negrófobo é o que tem negrofobia; negrofobia é ódio aos negros: Ai!!! que susto!...

Juro que tive um arrepio de horror, quando cheguei ao fim do meu ordenado raciocínio. Não por mim, que estou a coberto da lei, mas por eles, coitados, pessoas consideradas sérias, com responsabilidades, usando um ar severo e uns nomes respeitáveis (bem sei que alguns são uns pobres vagabundos, embora de analfabetismo muito actuante, em todo o caso seres humanos), por eles, sim, pobrezinhos, fiquei eu assustado, pois se a Lei é Lei e a Constituição vale, se a Civilização ocidental, se os princípios cristãos que enformam a nossa estrutura social, etc., se a nossa blandícia de costumes, oh coisa doce sem par no Mundo, se tudo isso, que a gente sabe e ouve e lê, tem valor, se, enfim, há sinceridade nisso; então não resta dúvida nenhuma de que esses desgraçados - que pena eu tenho das famílias! - estão aqui, estão todos presos.

A Polícia deve andar de olho neles. Com certeza, tem os negrófobos todos fichados e sob constante vigilância, pois que suspeitos são eles, os insensatos, de traição ao que há de mais sagrado, ao sangue dos ancestrais, à própria razão de ser da Lusitanidade, alastrando por todos os continentes, diversificada em tantas raças, mais feita de negros que de brancos.

Ai! dos negrófobos! Ai! dos traidores!
Que segurança dá ser negrófilo, estar-se a coberto da Lei, protegido pela Autoridade!

[A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano 4, nº 68, 28 de Fevereiro de 1963, p. 12 e 10]