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segunda-feira, 5 de abril de 2010

GOUVÊA LEMOS - Por Eugénio Lisboa

Os jornais noticiaram abundantemente a morte do jornalista Gouvêa Lemos. Que um homem tão pouco acomodatício tenha despertado uma tal unanimidade de tom nas notícias publicadas nos jornais das mais diversas orientações - eis, desde logo, uma indicação: Gouvêa Lemos era respeitado mesmo pelos que dele discordavam. Digamos que havia nele um não sei quê que desde logo se impunha. Talvez a sua bondade. Talvez a sua afabilidade. Talvez, sobretudo, o saber-se que era um dos raros homens que estava disposto a pagar com a própria vida o preço das suas convicções mais profundas.
Várias vezes o vi em sérias dificuldades - e estou talvez a dizer pouco: alguma vez o terei visto à beira da rotura total. Nunca notei, nesses momentos, que mostrasse, fosse como fosse, que o desespero o devorava.
Ficava-se amigo dele com facilidade - e ficava-se para o resto da vida.
Como jornalista, era muito mais do que um profissional sério e cheio de vivacidade. Tinha um estilo próprio. Qualquer texto seu, além de ser um modelo de literatura jornalística, era também um texto literariamente muito pessoal. Gouvêa Lemos escrevia bem, tinha o gosto da palavra única, aquela que, inesperadamente, entra em ressonância com a ideia que se quer percutir. Era um escritor genuíno.
A sua malícia estilística escondia um pouco o homem. Quem o lesse não deduziria dos textos o personagem que depois emergia. Estes eram por vezes mordazes, contundentes, aqui e acolá, méchants. Faltava, a temperá-los, o sorriso bonacheirão, a suavidade da voz e a doçura do olhar. De resto, falava como escrevia, mas, falado, deixava uma impressão diferente e mais suavizada.
Era sobretudo um homem de coragem, no plano profissional e no plano privado. Amava a profissão de cujos privilégios e autonomia era intransigentemente cioso. Tinha o brio próprio do técnico competente e odiava por isso a intromissão atrevida e volátil das aves de arribação.
Suponho que sabia exactamente o estado precário da sua saúde. No entanto, sempre que discretamente o sondávamos, mostrava-se animoso e cheio de planos. Creio que se tratava mais de sossegar-nos a nós do que de sossegar-se a si próprio. Era corajoso mas, com a sua peculiaríssima tolerância, não via razão para que os outros o fossem também. Por isso nos aquietava.
Partiu para o Brasil e não voltou. Dizem-me que nos últimos dias, já depois de operado, quando se lembrava disto, da terra e das pessoas, chorava. A chorá-lo, pela perda irreparável que a sua partida representa, ficamos nós. Parece que as pessoas como Gouvêa Lemos se demoram pouco neste mundo que é o nosso. Fulgem, - e desaparecem. No entanto, como observava um personagem de José Régio, 'este mundo ficaria mais pequeno se eles não passasem por cá'.

[In: A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, ano XIII, nº. 363, de 9 de Abril de 1972, p. 2]

sábado, 3 de abril de 2010

38 anos sem o Pai e jornalista Gouvêa Lemos

Há 38 anos, a 02 de Abril de 1972, em um Domingo de Páscoa, falecia Gouvêa Lemos aos 47 anos de idade.
Estávamos, eu e mais 3 irmãos, nas areias da praia de Ipanema no Rio de Janeiro junto a uns tios e amigos destes. Todos na expectativa do Almoço de Páscoa que iria acontecer em nossa casa, cuidadosamente e carinhosamente feito pela Madalena, onde a família iria festejar a Páscoa mas mais ainda o restabelecimento do pós operatório do mais velho dos Gouvêa Lemos.
Lá em cima, no Bar do Castelinho onde antes ele gostava de tomar o seu choop, estava na companhia da sua sempre companheira Madalena e de um dos filhos, o António Maria, e ainda com o proprietário do Castelinho com quem batia sempre um bom papo.
A certa altura, lá da praia, ouvimos da marginal uma freada de carro, uma buzinada. Em segundos, ao vermos que chegava em correria à nossa barraca o Tó Maria, deduzimos que a freada e a buzinada tinham sido causadas pela sua louca e apressada travessia da marginal da praia para logo nos alcançar e nos dizer:
- O pai desmaiou!
O Pai, quando levava um copo de suco de laranja à boca, deixou-o cair e tombou para nunca mais acordar do “desmaio”.
Ali, aos meus 11 anos de idade, perdi a oportunidade de conviver com ele com uma maturidade onde poderia ter aproveitado melhor os seus ensinamentos. Ali os meus irmãos mais velhos, mas não tanto, também perderam o seu herói. A sua companheira, Madalena, assumiu de imediato esse posto, Mãe e Pai.
Mas se nós perdemos, sei também que Moçambique perdeu definitivamente naquele Domingo de Páscoa o jornalista e Homem que ainda tanto teria para doar aquela terra que ele passou a amar quando emigrou de Portugal.
Se Gouvêa Lemos mostrava ter desistido de Moçambique colônia naquele inicio de 1972, quando o deixou para vir para o Brasil, tenho hoje eu a certeza que se não tivesse falecido tão precocemente não demoraria a retornar.
Mas se por muitos anos, depois da ida dele, fui ainda educado pelo meu Pai através dos seus amigos e pela minha Mãe quando me faziam o conhecer pelo o que eles o conheceram, sem medo de errar e fugindo de qualquer aparente prepotência, sei também que o jornalista Gouvêa Lemos deixou legado para o jornalismo, e não só, de Moçambique.

* O retrato do Pai é do pintor e poeta luso-angolano Neves e Sousa.