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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

CARTA DO BRASIL

 Por Gouvêa Lemos em 7-1-1963 - A TRIBUNA (Moçambique)

O leitor não tem nada com isso - a minha vida particular não lhe interessa - , mas eu vivi no Brasil. Sim, vivi lá, tenho lá família, tenho lá amigos e bastos motivos de saudade, tenho duas filhas brasileiras e tanto me interesso pela vida do Brasil que até lá andei metido em políticas. Políticas brasileiras, claro. E de tal maneira que, lá, eu até era da oposição e ninguém via mal nenhum nisso.
Explicando melhor : apesar de não ser brasileiro, achavam os brasileiros das minhas relações que, só porque eu vivia no Brasil, ali produzia algo, ali contribuia de qualquer humilíssima forma, para o progresso do Brasil, nem que fosse únicamente pagando imposto, achavam eles que eu tinha o direito de fazer críticas à administração, de discordar do Governo, de ter, em suma, opiniões políticas.

Os brasileiros são muito giros...
O que é certo é que eu usava esse direito, com uma descontracção explicável sómente pela força aliciante de tamanha liberdade, pelo entusiasmo decorrente de tanta compreensão.
Assisti à eleição do Presidente Juscelino, lá permaneci durante o Governo do Presidente Juscelino - eu era contra o Presidente Juscelino. Tão contra como os que iam aos mesmos comícios que eu procurava, da Praça do Congresso a Caxias do Deputado Tenório. Eu era contra, mas como estimo hoje o Presidente Juscelino, de tanto poder ser contra ele!
Vem tudo isto a propósito das cartas que recebo do Brasil, da minha mãe e dos meus irmãos, pondo-me às vezes em dificuldades para lhes responder, tal a confusão que lhes lavra no espírito sobre certas coisas que, à distância, são inexplicáveis (para me livrar de trabalhos, já tenho respondido que não posso responder) e nas quais me são contadas todas as dificuldades, todos os problemas, todas as tarefas que a família enfrenta, que a vida lhes opões, a par das pequenas alegrias e tristezas vulgares que são tema das cartas familiares. E tudo isto é mesclado, sempre, de comentários, de notícias, de esclarecimentos, de muitas espinafrações à política, ao Governo, de queixas contra os governadores de Estados, contra os ministros, contra o Presidente da República (a minha mãe não gosta do Jango Goulart), a propósito do custo de vida, a propósito do preço do gado, a propósito de tudo e de nada. Que beleza!
Aqui há tempos, mandei dizer a um irmão meu, preocupado com coisas que não lhe esclarecera devidamente em cartas anteriores, que já tinha percebido o seu grande amor pelo Brasil, a sua perfeita adaptação ao grande país, à maneira de ser do magnifico povo, pelo seu tom severo e exigente de referir-se às coisas públicas do Brasil. "Estás bom, meu irmão. Estás maduro. Deus te salve e ao teu Brasil".
A minha Mãe, que quando as vacas se vendem mal, ou não chove para os lados do Rio Pardo, no interior da Baia, se dá a excessos de pessimismo, escrevia-me há dias: "Não sei onde isto vai parar, mas tenho muita fé".

Gostei e vou responder-lhe:

"Tenha fé, senhora mãe. Tenha fé que onde vai o Brasil parar é muito longe e muito alto. Continue a mandar-me dizer mal do Jango e a aspirar por um presidente inteiramente "udenista", um Juarez, um senhor muito fino e respeitável das direitas. Continue a escrever-me sem medo do que pensa, e diga aos manos que também, que discordem, que falem, que se preocupem. Vivam cada minuto brasileiro com esse entusiasmo, com essa unção, compenetrados de que tudo é, ao fim ao cabo, negócios de família. E mandem-me dizer, oh! mandem-me dizer sempre, que me sabe muito bem ler isso que pensam e com o que , aliás, eu nem concordo. Mas digam, digam, livremente o que lhes parece dessa terra que é sua, minha mãe, e vossa, meus irmãos, e dessa gente admirável que afinal vós sois também."
"Escrevi toda a casta de espinafração contra o que não vos quadra ao parecer que tendes e á opinião que defendeis. Escrevi, que eu irei respondendo, assim sem jeito, atabalhoadamente, que não sei responder."
As cartas do Brasil, leitor, fazem-me reconstituir o espírito; dão-me saúde. Não só porque mato saudades da família - ou as exacerbo, o que vem a dar no mesmo - como renovam a fé que tenho no Brasil. Que tenho no futuro, vivendo em Moçambique e recebendo cartas da família.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Natal

Por Gouvêa Lemos, em  1957
Coluna Mesa Redonda

Para lá e para cá da Cortina de Ferro, o dia 25 de Dezembro é o Dia de Natal.
Até o roliço e reinado Nikita, com o ar de camponês abastado e contador de anedotas, há-de beber alegremente um bom vodka e renovará os votos habituais de paz e desarmamento, à mistura com umas graças pesadas sobre os países capitalistas. As agências ocidentais noticiarão, mais tarde, que certos círculos chegados ao Kremlim insinuaram que o sr. Kruschev estava etilisado. Serão, de certo, os mesmos círculos que, depois da morte de Staline, anunciaram ter sido constatado um endurecimento muscular do seu coração e daí tirarem definitivas conclusões morais...
O simpático Eisenhower, com o aspecto feliz de quem chegou das manobras e despiu a farda, há-de ser fotografado para o Mundo inteiro, com os netos nos joelhos, com a Mamie à sua direita, o filho e a nora, sorridentes, atrás. Tudo à sua volta, verificando a Humanidade, embevecida, que assim vive o chefe de uma grande nação democrática.

E enquanto os chefes de governo europeus, que participaram da última conferência da NATO, hão-de celebrar com as suas ilustres famílias a vitória colectiva, que se diz terem alcançado - não contra o inimigo e sim contra o aliado, o que se torna um pouco difícil de entender -, o que se celebra, na verdade, é, simplesmente, o nascimento de um Homem pobre mas estranho. Tão estranho, que era Deus.
E há-de haver um momento - tem de haver - em que todos esses personagens importantes ficarão a sós com os seus pensamentos, se alhearão de tudo o que se passar à sua volta e hão-de meditar um pouco sobre o dia que vivemos.
O depurador Kruschev pensará como é vária e inconstante a existência, de tal modo que aquele que hoje depura, será depurado amanhã. Que isso, ao menos resulte numa folga para Zhukov e para os peritos encarregados de lhe lavar o cérebro. E Eisenhower, tal como os seus colegas ocidentais, vacilarão uns segundos nas suas certezas. Hão-de suspeitar ou acreditarão mesmo, no íntimo, que a palavra Paz tem sido usada em vão e em mentira.
Todos eles - os grandes chefes - devem sentir, de súbito, vergá-los o peso brutal da responsabilidade por este mundo eriçado de projécteis balísticos, entumescido por bombas nucleares, ensombrado por bombardeiros e caças.
Todos se hão-de lembrar, para lá e para cá da Cortina de Ferro, que o dia 25 de Dezembro é o Dia de Natal. O dia em que chegou à Terra o Mensageiro autêntico da única Paz.


[Notícias da Tarde, Lourenço Marques, ano VI, nº 1702, 23 de Dezembro de 1957, p. 1]

 Figura: Roubado do blog Moda ao Cubo.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O CARNAVAL - 1958

Hoje, 18 de Dezembro de 2009, o Pai faria 85 anos. Como tenho tido dificuldade de escrever -  Freud talvez explicasse - sobre e para ele neste blog criado para o homenagear, vou mais uma vez no meu ritmo de aqui colocar o que é o maior foco deste espaço; o de dar a conhecer o que um homem pensava e como jornalista escrevia em outros tempos, décadas e ditaduras.
No seu aniversário de 1957, a 18 de Dezembro, GL escreveu sobre o carnaval carioca. Um carnaval que se de 1957 para cá mudou muito, onde grandes interesses financeiros tiraram muito da sua pureza, na sua essência não mudou tanto de como GL tentou o descrever.

Zé Paulo



O CARNAVAL - 1958
Por Gouvêa Lemos  - Coluna Mesa Redonda

Fala-se já em Carnaval e projecta-se um renascimento dessa pândega anual, em Lourenço Marques. Muita gente deve achar cedo para se falar de Carnaval, mas eu lembro-me agora de que, nesta altura, no Rio de Janeiro se conhecem os êxitos musicais do próximo Carnaval carioca. Já os compositores se afobam e os poetas se afadigam, lançando no mercado os sambas que hão-de marcar os bamboleios dos blocos e cordões de sábado a quarta-feira de cinzas. Já as escolas de samba, de Cascadura á Praia do Pinto, ensaiam e capricham nos coros, nos trajes e nas evoluções dos passistas. Já seu Ataúlfo e as suas pastoras gravaram um samba de morro, dos autênticos, do estilo - Amélia é que era muié di vêrdadje. E a onda dos plagiadores já foi buscar a inspiração aos clássicos do samba. E já se canta o que há-de fazer rêbolá e se esbaldá - todo o mundo - nas ruas.
Não serão as composições de melhor melodia e de versos mais bonitos as que se hão-de sagrar vencedoras nas preferências da multidão, comprimida, farrapeira embriagada e enfurecida pela febre de se divertir, mas submetida ao ritmo dominador, contínuo, uniforme - que se entranha nos corpos e parece estar até na atmosfera - o ritmo do samba.
Vencerão aquelas que têm sabor de Carnaval. As que fazem gingar os quadris, abanar os troncos, descair as cabeças para trás e arrastar os pés, a compasso.
Sabem como é? Se não viram, não sabem e eu também não sei explicar - como ninguém soube, até hoje.

[Notícias da Tarde, Lourenço Marques, ano VI, nº. 1698, 18 de Dezembro de 1957.]

Foto: Da esquerda para a direita, cantores Blecaute, Eloína, Orlando Silva  com Wilza Carla que foi eleita por voto popular a Rainha do Carnaval de 1958. Fonte: Blog PandiniGP

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O MELO DO "NOTÍCIAS" - COMO SÓI DIZER-SE





Nas suas "Folhas Perversas" do último Domingo, Guilherme Judas de Melo, o Melo do "Notícias", como sói dizer-se - como sói dizer o Melo - atendeu a encomenda de se meter com o ‘Notícias da Beira’. Forçado ele foi, com certeza, pois não contando a coragem nem o desassombro entre os seus trunfos e sabendo ele bem o vespeiro em que bulia, só por um sombrio pavor que alguns lhe conhecem faria o que fez.
Foi pegar de mau jeito numa página de Poesia organizada por uma colaboradora deste jornal em homenagem a Fernando Pessoa e numa discutível impropriedade das ilustrações escolhidas para os poemas farejou traições ao Poeta e traições à Pátria, pretendendo, em vão, mais do que colocar a senhora em situação crítica, atingir os “dirigentes e responsáveis” deste jornal, ‘que por ele responderão’, como não se esquece de ameaçar.
Antes de mais, o que torna especialmente descarada esta atitude é o facto de vir falar das responsabilidades que terão os dirigentes doutro jornal, quem, precisamente nunca foi capaz de as assumir no seu. Conhecido pelos seus antigos ou actuais colegas e subordinados por uma proverbial incapacidade para chefiar, dirigir e orientar, chefe de Redacção desrespeitado ou secretário-geral irrespeitável, atreve-se o Melo - eu conheci-o - a oferecer autoridade e a exportar disciplina...
‘Notícias da Beira’, cuja posição perante os problemas fundamentais da actualidade portuguesa e da realidade ultramarina é bem conhecida e resulta claramente duma firme orientação superior - que até a mim transcende, quanto mais a ele - não requer nem consente observações dum invertebrado escriba fugidio como o Guilherme de Melo.
Primeiro, o sujeito descobre um soldado, possivelmente desertor, num estafado campista, descontraído, estendido na plataforma rochosa duma qualquer montanha, visivelmente gozando o ‘prazer de não cumprir um dever’.
Depois, avulta a ligeireza com que se apossa, em sôfrego exclusivo, do espírito de Fernando Pessoa, que manipula por receita, metendo entre balas ‘a sua mensagem única e bem clara’, para nos afirmar que o ‘menino de sua mãe’ nunca poderia ser um ‘negro, asqueroso, imagem perfeita do bandoleiro a monte, arrancado aos pântanos de um Vietname". Aqui ficamos em dúvida sobre a ordem de razões em que o Melo se funda para considerar bandoleiro um negro, certamente americano, que se bate no Vietname. Mas ele lá explicará isso a quem deve.
Por outro lado, verificamos que tem da Poesia uma idéia tão ampla e da liberdade criadora do Poeta um conceito tão aberto, que, autor de versos e ganhador de prêmios literários, assim lhe compreenderemos facilmente a obra pífia de poetinha pseudo-lírico. Preocupado com os ‘poetastros que por aí pululem convencidos que ‘isto’ de se fazer poemas à Fernando Pessoa não custa nada’- e ele sabe o que custa -, o Melo tenta pôr-se de fora, quando, nisso mesmo que diz, poetastro ele é, poetastro se confirma.
Ora, de que tenta, afinal, acusar-nos o Melo? De termos albergado em página deste jornal o ‘mais revoltante e indigno achincalhamento do que por este nosso Ultramar toda uma juventude generosa e magnífica tem vivido, desde há sete anos feitos, em sacrifício e holocausto’, achincalhamento que seria constituído pelas tais ilustrações que ele reprova e a nossa colaboradora escolheu para 2 poemas de Pessoa. Uma delas, então, ele acha especialmente revoltante, porque se trata dum homem de cor, a figurar o ‘menino de sua mãe’. E diz que ‘aquela coisa ali arremessada como um escarro para aquela página’ não pode servir, sequer, para ‘englobar na mensagem belíssima e humaníssima que o poeta contém os nossos irmãos negros’. Porquê, não explica. E talvez não possa faze-lo, porque ninguém lhe garante que tenha sido negro aquele corpo queimado pelo fogo da guerra, que ‘jaz morto e apodrece’, e, de certo, tinha mãe.
Mas faz-nos pensar em que o Guilherme de Melo de ‘As Raízes do Ódio’, se não anda a preparar-se para alguma sessão pública de auto-crítica, ocupa-se com fervor em construir a sua retratação. Sobre as raízes do ódio, no seu romance, dizia o João Tembe (que não poderia ser o filho da sua mãe da ilustração revoltante) : ‘Mas também não posso esquecer que essas raízes, foram a violência e a injustiça, foram a destruição e a morte que as plantaram. Elas não germinaram espontaneamente no coração de cada um de nós. Alguém nos atirou a semente do ódio para o coração, alguém fez germinar essas raízes. Ah! Não senhor doutor, elas não germinaram espontaneamente nos nossos corações. Como impedir agora que a planta se desenvolva livremente e que a árvore frutifique? Como? Como senhor doutor?’ e respondia-lhe o doutor Santana (esse podia ilustrar o poema, que era alvo e louro) : ‘Compreendo-te, João Tembe,. Compreendo tudo o que sentes, tudo o que pretendes demonstrar. Sei tudo isso. Ao mesmo tempo que sinto que uma nova África começa a surgir. E nós estamos em África. (...) E é por essa África nova que todos nós - eu tanto como tu ou o António Manuel, repito-o - precisamos de lutar. Mas lutar com amor e confiança entre os três. Só assim valerá a pena Deus nos ter dado esta maravilha rara de vivermos a nossa existência precisamente na altura em que a Humanidade assiste a essa autentica viragem histórica: a surgir dessa nova África!’
Pois disto escrevia o Melo entre 1960 e 1962, já depois de terem começado a contar-se os tais sete anos feitos, e publicava há uns 3 anitos, quando começou a ir conviver com os soldados ao Norte, como diz, onde combatem, como confessa, o ‘João Bazenga ou Fabião Souquiço’, ao lado dos ‘Zés Marias e dos Augustos e dos Antónios’.
Quando seria, pois, sincero, o Guilherme de Melo? Então, cantando as rubras manhãs duma África nova? Ou agora, arrancando, a pedido, um ‘apartheid’ poético da ‘Mensagem’ de Pessoa? Eu digo-vos, porque estou certo disso, que ele não foi sincero então nem é sincero agora.
Então, ria-se a escarnecia de todos os conflitos que lhe deram tema ao romance; agora ele ri e escarnece da guerra no Norte. Sim,: agora, ele ri e escarnece dos dramas e das dores, dos sacrifícios e dos feitos que trata nas suas crónicas de campanha, com farto chorrilho de lugares-comuns e ‘hinos alevanttados ao jovem Soldado que morre pela Pátria nos planos longínquos’.
Fazendo dessa guerra a sua coutada jornalística, nela se escuda contra sustos profissionais e riscos de desemprego, ao mesmo tempo que colhe farto material para as suas graçolas e historietas de humor negro, exactamente criadas a partir do que mais respeito deve merecer a todos nós. Enquanto isso, no noticiário e até na escolha de fotografias de actividades militares, ele trata a guerra do Norte à luz dos seus problemas sentimentais.
Não foi sincero nunca, por que havia de ser agora? Reagindo a esta acusação, que não temo fazer, porque não temo provar, ele há-de erguer a voz com tremidos hipócritas e dará soquinhos na mesa para afirmar que o ataco por ele defender os sagrados interesses da Nação, as heróicas Forças Armadas, a permanência de Portugal em África. Com que moral e de que ponto de vista o fará? Com base na sua prosa oficial domingueira ou nos chilreios sarcásticos com que, entre amigos, a contradiz?
Quase no fim das suas ‘Folhas’ de anteontem, o Guilherme tem um laivo daquele remorso que levou o Iscariotes à forca e escreve: E dir-me-ão, ainda, que é muito feio armar-se em denunciante e menino queixinhas’. Que tolice. Ninguém vai dizer que está a armar--se, pois toda a gente sabe que é. Denunciante, no pior sentido. Que se vinga, com intrigas odiendas e queixas sinistras, das suas frustrações. Que á falta de ascendente moral sobre os seus inferiores hierárquicos, os castiga com falsas denúncias.
Fecha com chave de ouro, o Melo do ‘Notícias’, erguendo de súbitos seus ais sentidos ‘por pensar que, numa altura em que tanto bradamos pela necessidade, cada vez maior, de uma crescente liberdade para a Imprensa a troco de uma, naturalmente, também cada vez maior responsabilidade, demos assim tão triste conta de nós, com brincalhotices deste jaez que a ninguém aproveitam nem dignificam’. E já prevê, como quem pede: ‘E, depois - aqui dél-rei!...’
Aqui, está a ser coerente. Bem sabe ele que o seu próprio caso de jornalista é um fenômeno só possível em certas condições especiais. Ele sabe que não resistirá à água corrente da tal liberdade responsável. Ele sabe que é uma flor do pântano.

Por Gouvêa Lemos

Edição particular para oferta
09/12/68


Este artigo, para fugir da censura, foi editado de forma particular, ainda que usando as oficinas do "Notícias da Beira", na cidade da Beira, Moçambique.
Aqui Gouvêa Lemos mostrou a sua "ira" quando lhe pisaram os calos profissionais através de uma colaboradora que percebe-se não a ter aqui exposto. Penso no entanto, se a minha memória não falhar, pelo o que a Mãe me contava, que era esta colaboradora a poetisa Glória de Sant'Ana.
Em outras oportunidades que "reeditei" este artigo, em outros espaços na internet, houve quem tivesse questionado a minha iniciativa em divulga-lo, o que tenho para mim ser um documento do jornalismo moçambicano e por isso não dever te-lo apenas na minha gaveta.
Conhecendo os valores do meu Pai e por termos amigos intimos da família assumidamente homossexuais, não vejo aqui nenhuma alusão ou critica do GL pelas preferencias sexuais do Sr. Guilherme de Melo, que anos mais tarde, mas ainda em um periodo onde não era fácil, corajosamente assumiu para uma sociedade preconceituosa.
O que vejo, e provavelmente perceberam os leitores, é que o GL não gostava de "meninos queixinhas", a quem apelidavamos de "maricas", e haveria de ter motivos para ter feito as afirmações que fez no artigo.
Zé Paulo

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Carta ao Gouvêa Lemos - Por Eugénio Lisboa em 1964

Quem conheceu Gouvêa Lemos em Moçambique sabe que ele tinha como um dos grandes admiradores e grande amigo o Eng.  Eugénio Lisboa.
Algumas vezes o Eugénio Lisboa publicou para transmitir essa admiração através da imprensa, em especial na "Voz de Moçambique", onde GL teve participações como colaborador, especialmente quando teve que se afastar do que foi o seu maior sonho no jornalismo moçambicano, que havia sido o seu envolvimento e comprometimento com o projeto do jornal "A Tribuna".
Nesta fase o GL sofreu muitas presões dos todos poderosos do governo da província o que começou a criar problemas para a própria "Tribuna".
Foi, talvez, a maior crise que passou na sua profissão, pois acabou por se afastar da equipe da "Tribuna" e ficando desmpregado (na Tribuna já estava com problemas financeiros e com as dificuldades os chefes não recebiam antes de se pagar os salários dos colaboradores), o que gerou, é claro, grandes consequências na sua vida privada pois o  dinheiro faltou em casa e por um bom tempo a comida por lá chegava através de amigos. Nessa fase Gouvêa Lemos recebeu um convite para colaborar de forma mais ativa na "Voz de Moçambique", mostrando que por ali havia gente de coragem para, ao conhecerem profundamente o que se havia passado na "Tribuna" ,o convidarem para o seu meio.
Nessa fase o Eugénio Lisboa escreveu a "carta", que reproduzo abaixo, que teve grande impacto no meio jornalístico, na sociedade, e claro nos "pides" e outros poderosos.

Zé Paulo


CARTA AO GOUVÊA LEMOS (*)

À Quina


Caro amigo:

Esta carta que hoje me apetece escrever-lhe é, se não estou em erro, a segunda que lhe envio. A primeira escrevi-lha (mas não cheguei a publicá-la ou ela não chegou a publicar-se) aqui há uns bons anos atrás: era uma prosa cheia de uma argumentação miúda, com a qual tentava provar-lhe aquilo que até certo ponto os factos se encarregaram de mostrar que não tinha lá muita viabilidade de prova… Como discordávamos, acabámos por ficar amigos. Assim vai o mundo!
Mas hoje o caso é outro. Por que lhe escrevo? Para lhe ser franco, não sei bem se conseguirei encontrar, por enquanto, uma resposta que possa ir muito além de um caprichoso 'por que me apetece!' O caso é que vou escrever-lhe. E é até possível que, neste inútil exercício de um diletantismo que me é saboroso, eu acabe por encontrar, com alguma nitidez, o contorno das razões que por enquanto se me impõem apenas sob a forma nebulosa de uma violenta vontade de lhe escrever. Seja pois o que Deus quiser!
Dou ao diabo os escrúpulos que pudesse ter com a sua modéstia e aqui lhe vou dizer de frente o que até agora tenho andado a cochichar a alguns amigos comuns e sempre rigorosamente nas suas costas: Você é um jornalista de talento e, tanto para os que gostarão de o ouvir dizer, como para aqueles que vão gostar um pouco menos, como até para os que não vão gostar absolutamente nada, eu não hesitrei em lhe dizer que Você é não só o mais talentoso jornalista que tenho lido em jornais portugueses, como até um dos poucos que efectivamente honram essa profissão que o é tanto como qualquer outra. Mas esta opinião, que partilho de resto com vários amigos, não é ainda daquelas que tenho tido a preocupação de cochichar quando o apanho de costas voltadas. Se lha não dei já por estas palavras, tê-la-ei dado pouco mais ou menos nestes termos ou, em qualquer dos casos, não tive o cuidado expresso de lha não dar. Você não é mais vaidoso do que aquilo que é normal e até saudável ser-se e não ia portanto correr o risco de desintegrar-se só porque este seu modesto (mas malcriado) amigo é de opinião que Você, em matéria de jornalismo, é um 'truta' dos antigos. O que eu nunca lhe disse a si mas me tenho fartado de andar a dizer aos amigos (e aos outros) é que o seu talento, por muito que seja, é o que, em si, menos impressiona. Para lhe ser franco Gouvêa Lemos, estou-me até borrifando para o seu talento (já lhe disse que era malcriado!). Gosto, é claro, dele, como gostam todos os que o reconhecem, preciso (precisamos!) dele para que V.M. seja o que tem sido, aborrecer-me-ia imenso que os serviços que ele tem prestado deixassem de estar disponíveis, mas que quer Você?, sou feito assim: o talento e a inteligência das pessoas são qualidades admiráveis mas não creio que sejam elas, em si, aquilo que as torna pessoas dignas de estima e admiração. Até porque as pessoas possuidoras de tais predicados 'nada' fizeram para os ter: foi a Madre-Natura, generosa e propiciadora, quem lhos ofertou com maior ou menor dose de arbitrariedade. Você, Gouvêa Lemos, não tem afinal culpa nenhuma do talento que possui! Do que Você já poderia ser culpado, e muito, era de não o ter sabido até agora empregar! Tudo está na orientação que se dá a tão perigosos dotes… E é precisamente aqui que eu começo a entrar na zona do que até agora não tem passado de cochichos. É muito simples: queria dizer-lhe que Você, muito mais e muito melhor do que ser uma pessoa cheiíssima de talento (há-os para aí às dúzias, há até cada vez mais!) é uma pessoa de carácter e é também um homem profundamente bom. Isto sim, estimo eu, que é uma dura aplicação e conquista de todos os dias, que exige uma luta sem quartel contra o que em nós convida à complacência e que põe à prova muito mais do que os talentos que o berço nos legou.
Você é forte, da força dos teimosos e dos íntegros, possui da honra um conceito muito antigo, um daqueles conceitos absolutistas e um pouco 'farouches' que nós tínhamos quando éramos garotos e queríamos por força ser 'sempre' os últimos a cuspir. Mas você, com tudo isto, é sobretudo um homem cheio de bonomia, de tolerância e de bondade. Você só é mau, rigorosamente, para si próprio... Ai, porém, de quem queira pisá-lo! Você tem arriscado a vida (a sua e a dos seus), tem feito mais do que arriscá-la: tem-na francamente comprometido! Você tem passado mal, um mal que não é eventual, mas contínuo, persistente, corrosivo, daqueles que deprimem e oprimem, e no entanto, Você tem sempre uma palavra boa e um ar de optimismo que crucificam o mais pintado. Você tem tido todas as razões (e mais uma) para há muito se ter rendido e, no entanto, mesmo já sem balas, Você ainda usa o bacamarte à laia de cacete. Voltando ao meu tempo de miúdo e pondo-me a lembrar um velho e esquecido filme de Orson Welles (chamava-se 'Jornada de Pavor' e às vezes há razão para ter pavor), Você tem frequentemente sido o pobre do Joseph Cotton, também bonzão e tolerantíssimo, encurralado num quarto no extremo do corredor de um navio sinistro, rigorosamente sem saída, cercado por todos os lados (como as ilhas), sem armas, mas considerando muito a sério a possibilidade de salvação por via de um minúsculo canivete limpa-unhas! Confesse, Gouvêa Lemos, que era optimista e resistente o bom do Joseph Cotton! Teimosa raça de honestos que Vocês são! Embirrantes criaturas, chatíssimas trepadeiras, que despistam todos os cálculos daqueles para quem tudo é cálculo! É o que os desbarata - esbarrarem com algo que não tinha sido incluído nas previsões do orçamento: a honradez, a inteireza, as barbas do Vice-Rei! E ficam logrados…
Dizia o bom do Alexandre Dumas Filho (regressámos à infância, lembra-se?, perdoe-me pois o pouco alevantado das citações…), dizia ele, o Alexandre Dumas, Filho, que 'a honestidade é a maior de todas as malícias, porque é a única que todos os maliciosos não prevêem'. Como é verdade! Que grande malandro, no meio de toda esta tristeza, Você acabou por me sair, ó Gouvêa Lemos! Alguns deles a contarem que Você fosse se entregar e Você com aquele seu ar arrelampado, de olhos muito abertos e bigode murcho, a dizer na voz arrastada que a gente lhe conhece: 'Eu lá disso de contas não sei nada! Eu até só sou teimoso!…'
Pois é verdade, sempre acabei por achar aquilo que lhe queria dizer. Era afinal tão simples: do que gosto, em si, é, sobretudo, da honestidade, da tolerância, da bondade e dessa tão embirrenta maneira de ser 'malicioso'… Parece-lhe pouco?
Salvé, amigo velho! E até à próxima que há-de ser, se não estou em erro, no sábado, ao café, depois do almoço. Para nada em especial, apenas com o fim de, como diz uma boa amiga nossa, 'discutirmos um assunto',

Seu,

Eugénio Lisboa

[Semanário 'A Voz de Moçambique', nº. 146,de 13 de Setembro de 1964]

 * A Quina era a hoje falecida esposa do advogado e intelectual moçambicano Dr. Adrião Rodrigues, amigos em comum do Eugénio Lisboa e Gouvêa Lemos.

*Pides - Os que serviam direta ou indiretamente à PIDE, policia politica do regime fascista de então.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

BOAS FESTAS!


Gouvêa Lemos -  Coluna Mesa Redonda

Este período que antecede o Natal, pela tradição e pelo significado, é um período alegre, risonho e de ternura universal.
Posto isto, vejamos se não é, também, uma grande estopada!
Os cartões de boas-festas vêm logo à cabeça. É uma prática de fina cortesia e de inegável cordialidade, essa troca de cartõezinhos ou de vastos impressos a cores, com votos de felizes festas e um próspero Ano Novo. É um laço que se ata em Dezembro, entre os corações das mais diversas gentes. Mas é uma bomba, pá!
Por exemplo: desta vez, eu tencionava manter-me anónimo e alheio a esse campo de actividades. Mas já não posso fazer tal, sem graves danos para esta reputação que prezo e me esforço por manter de criatura remediadamente educada.
Tenho, pelo menos, de agradecer e de retribuir uns poucos de votos, que me buscaram venenosamente e me encontraram, por fim. E segue-se a tragédia. Escrever cartões, arranjar envelopes de tamanho e formato funcionais, colar estampilhas, pôr no correio. E no meio dos afazeres inadiáveis e escravizantes de um sujeito atrapalhadiço, como sou, surge, a espaços, a sombra negra de um lembrete, os cartões. Ah, os cartões, tenho de fazer os cartões.
Depois vêm os presentes. Aqueles presentes bonitos, embrulhados em papel com árvores, caras de Pai Natal e fitas vermelhinhas. Não dou presentes a ninguém acabou-se. Mas olha que Fulano, Beltrano e Cicraninho já deram uns brinquedos aos garotos… surge sempre a maligna insinuação. E aí está outro problema agudo, a cotucar-nos o espírito. Compras, dinheiro e embrulhos, numerosos embrulhos - uma avalanche de embrulhos, um pesadelo.
Por fim, há que acertar com todos os casais amigos o que vamos fazer no Natal. Vocês vêm a nossa casa. Não. Vocês é que vêm à nossa. Mas que ideia! Pois isto já ficou assente desde o ano passado! Geralmente, a estratégia é jantar nas duas casas. Em uma delas, na véspera e na outra, no dia propriamente dito.
E a passagem do ano? Onde vamos passar o ano? É atroz esta dúvida. Estava combinado irmos com XX. Mas eu já disse aos YY, que sim… E ameaça-nos a sombra dos melindres. De bom conselho é, em tais casos, sermos acometidos por um ataque de fígado, no dia 31, à noite, procedendo-se à substituição do calendário, na parede da cozinha tomando uns sais de frutos. Que ninguém veja nisto um sinal de menos respeito pela maravilhosa época, vivida por toda a Humanidade, em Dezembro. Ah, não. Que ninguém escreva para o Debate!
Mas que também é uma grande estopada isso é. Sobretudo, porque não temos férias, durante o mês inteiro, para bem tratarmos de todos os pormenores e de todas as regras de uma vida social correcta e amistosa.
Entretanto, meus amigos, Boas Festas.

(Notícias da Tarde, Lourenço Marques, ano VI, nº. 1700, 20 de Dezembro de 1957, p. 1)